quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Quando é preciso ignorar a lei


Hélio Schwartsman
Clipping Educacional - Folha.com
Na semana passada, perpetrei para a versão impressa da Folha uma coluna em que mostrava a importância da polícia para a redução da criminalidade ao longo da história. "En passant", como sugestão para reduzir as tensões na USP, defendi que os policiais lotados no campus fizessem vistas grossas para o consumo de maconha. Foi uma chuva de e-mails. O pessoal da esquerda me recriminou por ter perdido uma oportunidade para advogar pela descriminalização da erva. A turma da direita, um pouco mais truculenta, para não trair o estereótipo, me desancou porque afirmei que agentes da lei devem às vezes desrespeitá-la.
Tolo que sou, dois dias depois, voltei à carga numa segunda coluna, em que procurei esclarecer minha posição. Foi uma nova enxurrada de e-mails. Como a teimosia é uma característica do ser humano, vou para a terceira tentativa, desta vez com um público ligeiramente diferente e sem as limitações de espaço. O tema é importante e não devemos ter medo de abordá-lo.
No fundo, o que eu afirmo é que o legalismo estrito é uma posição inconsistente. Tanto por razões teóricas como práticas, policiais necessariamente fecham os olhos para dezenas de violações à lei todos os dias.
Para começar, normas que assumem a forma de comandos legais não dão conta das complexidades do mundo real. Não conseguimos traduzir para o formato de regras discretas (leis) o conjunto dos comportamentos sociais que desejamos promover.
Essa impossibilidade fica clara na inteligência artificial. Na hora de programar um computador, atividades que humanos tiramos de letra revelam-se extremamente difíceis de transportar para as máquinas. Um caso relativamente simples, como o de não enquadrar o sujeito que cede um comprimido para o colega com dor de cabeça por tráfico de drogas ou exercício ilegal da medicina, exige familiaridade com um amplo conjunto de regras não escritas de sociabilidade que chamamos de bom-senso. São essas normas que nos permitem reconhecer diferentes contextos sociais e por eles navegar. Mesmo que fôssemos capazes de formulá-las de modo inequívoco, elas atuam em tantos níveis simultaneamente que tornariam a programação um problema intratável.
Entre humanos, falhas para reconhecer ou gerenciar esse sistema de normas sociais resulta no autismo, cujo grau de penetrância determina desde uma leve inabilidade para lidar com pessoas (síndrome de Asperger) até o colapso completo da sociabilidade e da própria linguagem (autismo clássico).
Ainda que tivéssemos leis perfeitas no sentido de afastar qualquer ambiguidade, nosso pobre policial teria dificuldades para aplicá-las a todos os casos. A questão aqui é material. Os recursos à disposição da segurança são finitos --e duvido que a maioria dos contribuintes esteja disposta a aumentá-los para muito além de um determinado teto. Isso em tese forçaria a corporação a eleger prioridades, isto é, a definir os tipos de crime que vai combater com mais afinco e relegar os demais a posições inferiores, no limite, fechando os olhos para algumas violações. Embora os códigos penais não cheguem a estabelecer explicitamente uma hierarquia da repressão aos crimes (em teoria o policial deveria estar atento a tudo), a sociedade decerto o faz. Numa análise utilitária, acho que (quase) todos concordarão que cometer um assassinato é mais grave do que dirigir embriagado que é pior do que fumar um baseado permanecendo bem longe do carro.
O tamanho do problema material fica claro com o seguinte experimento mental: podemos sinceramente desejar que todos os assassinatos do Brasil (algo perto dos 50 mil por ano) sejam elucidados, seus autores capturados, julgados e condenados. Eles representariam uma administrável fatia de 10% dos cerca de 500 mil presos brasileiros. Mas será que alguém sinceramente deseja que todas as mulheres que fazem um aborto (número estimado em 1 milhão por ano pelos demógrafos Mario Francisco Giani Monteiro e Leila Adesse num trabalho de 2006 leia aqui em PDF) vão para a cadeia? Quem não acredita na cifra de 1 milhão sinta-se livre para escolher a fração que desejar: 700 mil, 500 mil, 200 mil... Receio que nem o Vaticano realmente queira prender tanta gente. Na mais modesta das hipóteses (as 200 mil), seria necessário construir 1 presídio feminino (unidades de 500 vagas) por dia.
Gostemos ou não, temos de escolher alguns crimes para coibir com seriedade, deixando os demais num plano inferior, a tal da "vista grossa". A alternativa é ir encarcerando parcelas crescentes da sociedade, muitas vezes por delitos sem vítima ou ofensas menores. Não faz sentido econômico, social, criminológico e muito menos humanitário. É a rota que os norte-americanos adotaram e, mesmo assim, apresentam índices de violência bem piores que os dos mais liberais europeus.
É até razoável arguir que fazemos pouca "vista grossa. Um dos fatores que tornam nossas polícias ineficientes é que elas não conseguem estabelecer prioridades. Dada a limitação de recursos, cada vez que a PM leva garotos que fumam maconha para levar o sabão do delegado (e ser liberados em seguida) ou se dedica a alguma outra picuinha, rouba-se o tempo de alguns soldados e de um delegado que poderiam estar em patrulha ou investigando crimes mais sérios. Some-se a isso a quantidade absurda de burocracia e a redundância burra dos procedimentos judiciais e temos um início de explicação para o fato de as nossas autoridades esclarecerem apenas 8% dos homicídios.
Tendo respondido ao que me parece mais essencial das objeções levantadas pela turma da direita, passemos às críticas da esquerda. Evidentemente, eu não pretendo que os policiais tratem os filhinhos da elite branca na USP melhor do que tratam os favelados. Se dei a sensação de que coloco alunos ªde bemº numa categoria especial, expressei-me mal. Posso ser acusado de várias coisas, mas não de anti-republicano. Defendo a igualdade de todos perante a lei. O que eu sugeri é que policiais utilizem o seu poder discricionário para ignorar o que não é importante e concentrar-se no mais urgente.
Em relação à discriminação da maconha, venho já há muitos anos a defendendo neste espaço, por acreditar que não cabe ao Estado definir o que cada cidadão pode ou não ingerir. Na verdade, não me restrinjo à maconha. Para uma política dessas fazer sentido, ela precisa abarcar todas as drogas e não pode ficar na descriminalização, sendo necessário partir para a legalização, isto é, permitindo a produção e o comércio com a devida cobrança de impostos, a exemplo do que ocorre com o álcool e o tabaco. A redução do número de fumantes mostra que é perfeitamente possível combater sem criminalizar. E, quanto mais leio sobre a neurociência por trás da dependência, mais me convenço de que o paradigma proibicionista é uma maluquice.
Voltemos a nossos estudantes. A descriminalização e a legalização, se vierem, ainda vão levar muitos e muitos anos. Já o "fechar de olhos" da polícia é um dado da realidade. Se o objetivo da corporação é garantir a segurança no campus, como todos esperamos que seja, então ela deveria fazer um certo populismo, admitindo tacitamente a política de vistas grossas. Isso a ajudaria a conquistar a simpatia da comunidade universitária, o que favoreceria enormemente seu trabalho. Na pior das hipóteses, teria evitado o pretexto para as ridículas invasões da FFLCH e da Reitoria.
Hélio Schwartsman, 44, é articulista da Folha. Bacharel em Filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha.com às quintas-feiras

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