sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Censura e consciência

Hélio Schwartsman
Clipping Educacional - Folha .com
Comento com algum atraso a suposta censura a "Caçadas de Pedrinho", um dos títulos infantis de Monteiro Lobato, por trazer "formas de expressão" racistas. Usei aqui o "suposto", porque, como mostrou meu amigo Marcelo Coelho num belo artigo para a Ilustríssima do último domingo, o Conselho Nacional de Educação (CNE) não chegou nem perto de proscrever a obra --o que nem poderia fazer-- ou criar obstáculos intransponíveis a sua utilização nas escolas. O que o parecer nº 15/2010 faz é admitir que o texto traz um linguajar complicado e, elevando o burocratês das autoridades educacionais a sua forma mais perfeita, cobra a formação de professores aptos a lidar com a temática dos estereótipos raciais e sugere que livros com inclinações preconceituosas não sejam escolhidos para fazer parte do Programa Nacional Biblioteca da Escola, mas, se mesmo assim forem, que se exija dos editores a inclusão de notas que apontem criticamente para o problema.
A meu ver, as recomendações ficam entre o desnecessário, o ligeiramente contraditório e o cosmético. É até divertido imaginar que não tenhamos até hoje conseguido formar bons professores para as redes pública e privada, capazes de discutir com toda propriedade assuntos difíceis como o racismo, porque o CNE jamais havia instado as universidades a fazê-lo. Já quanto à suposta solução das as notas, eu não diria que sou contra. Se explicam até que antigamente se caçavam onças, mas que agora o Ibama impede mais esse crime ambiental, certamente não há mal em indicar que a linguagem relativa a estereótipos raciais também mudou. É evidente, contudo, que isso funciona muito mais tranquilizar consciências do que para eliminar o racismo da sociedade.
A minha sensação é a de que estamos diante de uma verdadeira tempestade em copo d'água. O que temos aqui é basicamente a burocracia seguindo seu caminho: diante da reclamação objetiva de um funcionário contra o livro, as engrenagens oficiais são postas em movimentação para produzir uma resposta quase anódina, mas que, por alguma razão, foi transformada em cavalo de batalha ideológico, discriminando entre defensores da liberdade de expressão e promotores da igualdade racial.

Trata-se,evidentemente, de uma falsa questão. Em primeiro lugar, como já enfatizei, não haveria censura mesmo que o parecer do CNE fosse homologado pelo MEC, o que dificilmente ocorrerá, dada a dimensão que o caso adquiriu. E nem seria necessária a interferência da tecnocracia pedagógica para fazer com que Monteiro Lobato seja menos lido. Receio que esse processo esteja acontecendo naturalmente. Não disponho de dados muito objetivos, mas creio que a obra envelheceu mal.
Eu, que me tornei leitor pela pena de Lobato, fiz o que pude para que meus filhos gêmeos, Ian e David, agora com oito anos, descobrissem os prazeres do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Não tive muito sucesso. Quer dizer, o David, que lê tudo o que lhe caia em mãos, de bula de remédio a pareceres do CNE, ainda enfrentou alguns volumes, mas não chegou nem perto de experimentar o encantamento que eu tive com "Os 12 Trabalhos de Hércules". Para ficarmos no mundo helênico, ele prefere mil vezes mais Rick Riordan ou o próprio Homero nas muitas versões adaptadas para crianças. Não sei se é o registro de um Brasil rural que não lhes diz mais nada ou se é a concorrência globalizada, mas não vislumbro um futuro muito brilhante para Lobato. Espero estar errado.
Voltando à falsa polêmica, também me parece uma idiotice transformar o combate ao racismo (ou a qualquer outro "preconceito") numa perseguição a fantasmas do passado. Se a estratégia for levada a ferro e fogo, só nos permitiríamos ler autores contemporâneos e comprometidos com o linguajar politicamente correto (PC) --ou seja, sacrificaríamos toda a literatura, a filosofia e grande parte da ciência. OK, Lobato descreve negros em linguagem hoje imprópria --embora, como notou Coelho, a mensagem final de "Caçadas de Pedrinho" seja antirracista. Mas Aristóteles era escravagista e Shakespeare retrata alguns de seus personagens com generosas pinceladas de antissemitismo. O que vamos fazer com esses e outros autores Restringi-los aos infernos das bibliotecas? Correr a produzir novas edições críticas que assegurem a justa interpretação dessas passagens delicadas? Até os desenhos de Tom & Jerry e do Pica-Pau incorrem em especismo e violência gratuita.
Minha implicância com o PC não é só com o fato de ele ferir de morte o humor mas principalmente porque representa um insulto à inteligência. Uma das características mais notáveis da mente humana é a autoconsciência. Em algum grau, nós a compartilhamos com outros mamíferos. Experimentos mostraram que alguns (mas não todos) os chimpanzés, orangotangos, golfinhos e elefantes são capazes de reconhecer a própria imagem no espelho. Isso implica algum nível de autoconsciência corporal. Só que a humana vai bem mais longe. Não apenas somos capazes de perceber nosso corpo como ainda conseguimos projetá-lo mentalmente no passado ou no futuro dissociando-nos de alguns aspectos de nosso "eu" atual. É uma forma bastante sofisticada de autoconsciência, que responde por grande parte de nossas habilidades para resolver problemas e pela integralidade de nossas belas-artes e ciência.
E o PC é o novo fundamentalismo exegético. Ele postula uma espécie de presente eterno e presume que perdemos essa capacidade tão humana de nos lançarmos no passado carregando apenas a bagagem necessária. Exceto quando alertados por uma nota explicativa, não saberíamos mais perceber que valores e ideias podem mudar com a passagem do tempo nem produzir juízos morais consonantes com o "Zeitgeist" (espírito da época).
Como sempre gosto de culpar a religião por alguma coisa, diria que aprendemos esse mau hábito com certas igrejas as quais, contrariando todas as evidências, proclamam a imutabilidade da moral.
Para não encerrar mais uma coluna falando mal do papa, entretanto, voltemos ao cérebro. O que as novas pesquisas nesse campo indicam é que a consciência não passa de um efeito colateral. Isso mesmo, o "eu" que acreditamos existir dentro de nós e em vista do qual vivemos nossas vidas é, segundo o modelo do neurocientista Michael Gazzaniga, um subproduto de diversos módulos cerebrais ligados em rede analisados pelo que ele chama de "intérprete", estruturas localizadas no hemisfério esquerdo responsáveis por essa sensação de todo unitário. O intérprete é o cérebro sabichão. É ele que busca desesperadamente dar um sentido a todas as nossas experiências, memórias e fragmentos de informação. Quando a história não fecha, pior para a verossimilhança: o intérprete não hesita em criar desculpas esfarrapadas e explicações que beiram o "nonsense".
Não é uma origem muito nobre para o conceito de consciência, que tanto ocupou e encantou os filósofos, mas explica muito dos anos-luz neurológicos que nos separam os cérebros humanos dos de nossos parentes mais próximos.
Hélio Schwartsman, 44 anos, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha.com.
fonte: http://www1.folha.uol.com.br

0 comentários:

Postar um comentário